quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Por uma teoria do poder discente



Se o amor, para a música “Provas de amor”, dos Titãs, só existe nas provas que se faz dele, para Michel Foucault também “o poder não existe; existem, sim, práticas ou relações de poder.”[1] Na mais exata classificação que a gramática faz dos substantivos abstratos, as palavras amor e poder apenas nomeiam seres que não têm existência própria, mas derivam o seu ser de outros seres já existentes.[2]

Considerando, pois, o poder enquanto algo que é exercido pelos indivíduos em suas relações de forças cotidianas pretendo novamente abordar aqui o poder discente como algo visivelmente notável no espaço escolar, cujos resultados também são expressamente percebidos por qualquer observador atento que reflita sobre a problemática escolar atual.[3]

Se o exercício do poder pelos governados resultou progressivamente na diminuição do poder central do governante o mesmo se pode dizer do exercício do poder discente, e não o falo motivado por qualquer saudosismo docente. Não se trata de afirmar o poder discente, conforme podemos observar no seu desenvolvimento histórico, como algo resultante apenas da relação de forças entre professor/diretor/escola X aluno, mas de, através de uma investigação atual e localizada, afirmar que essa relação de forças é determinante no modo como as escolas funcionam hoje e diz muito sobre a forma como a aversão ao saber se instala cada vez mais forte numa época que se pode denominar de sociedade da informação e do conhecimento.

Neste sentido, se é possível afirmar que à diminuição do poder central dos governantes não corresponderam formas qualitativamente superiores de participação política por parte dos cidadãos, o mesmo se pode concluir do que resulta da diminuição do poder docente, isto é, não assistimos hoje a uma maior participação do aluno no sentido de lutar por processos educativos que contribuam para uma formação de qualidade, seja nos aspectos da formação para o trabalho, do desenvolvimento pleno do aluno ou da formação para a cidadania, mas sim de minar o poder de formação dos educadores, sobretudo daqueles embebidos de um encantamento que os mobiliza à promoção de uma educação emancipadora. E muitos dos exemplos de conflito entre professor e aluno já listados neste blog evidenciam este fato.

Na condição de professor lamento que o exercício de poder discente se dê, por exemplo, em favor do que tenho denominado de saber fast food. Trata-se daquele saber de caráter sucinto, subtraído de toda e qualquer relação que esse saber mantenha, em suas múltiplas relações de constituição, com o mundo real. É como ignorar, por exemplo, que a passagem do mito ao logos não tenha nenhuma relação com o surgimento da pólis grega e o exercício da palavra que convence pelo cidadão, conforme sugere Jean-Pierre Vernant,[4] ou que o advento do Romantismo enquanto momento cultural do Ocidente nada tenha a ver com a ascensão da burguesia europeia e de todos os modos de viver e ver o mundo próprios dessa classe vivenciados a partir do século XVIII.[5] Obviamente que os conceitos de mito, filosofia e Romantismo podem ser abordados isoladamente, recortados do seu contexto de formação, para se ganhar tempo e não forçar o pensamento, mas é questionável até que ponto um ensino que trate o saber desse ponto de vista contribui para fazer o aluno compreender que o conhecimento se constitui a partir de múltiplas relações com o mundo real, o que o ajudará também a refletir sobre noções como pobreza, desigualdade, classes sociais e corrupção política como categorias que tentam apresentar a realidade não como fenômenos naturalizados, dados previamente, mas como construtos sociais seja em relação ao que a noção designa, seja em relação à própria designação como um construto social, uma resposta a uma determinada problemática do mundo humano.

Se essas são, portanto, as reinvindicações dos discentes, atualmente, o que esperar desse exercício de poder discente a partir de então? Obviamente que há muito em jogo nessa problemática, como o generalizado processo mesmo de valorização apenas dos saberes necessários ao trabalho, ao exame escolar oficial ou o mínimo exigido para a obtenção de um diploma. A crescente mercadologização do ensino,[6] que privilegia o acesso ao diploma em prejuízo do saber, é outro fator que muito contribui para essa problemática, somada à satisfação generalizada que o acesso ao trabalho para manter um nível cada vez mais crescente de consumo parece proporcionar aos indivíduos em geral, que não se veem motivados a uma busca do saber como algo inerente ao próprio processo de desumanização das pessoas.

O que fazer, então? Fazer retroceder a balança do poder em benefício do professor e da escola com o fim de forçar os alunos a processos de aprendizagem mais comprometidos com a emancipação humana parece inviável, seja pelo caráter impositivo que o processo de ensino adquire, seja pelo fato de os próprios professores, as escolas e os sistemas de ensino, em sua maioria quase absoluta, não serem capazes de perceber a gravidade da problemática e de estarem, inclusive, dispostos a perpetuar o ensino fast food. A questão é que se hoje os alunos exigem o saber fast food, amanhã exigirão apenas o boletim escolar com a designação “APROVADO”, servindo as salas de aulas, como muitos já a tornam, como apenas espaço de lazer, conversação informal, espaço por excelência de compensação dos momentos de interação virtual.

(In)felizmente quando esse momento chegar, e não está tão distante, acho que não estarei mais numa escola.

[1] MACHADO, Roberto. Introdução. In: FOUCAULT. Michel. Microfísica do poder. 22 ed. Rio de Janeiro: Graal, p. XIV.
[2] Cf. AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da Língua Portuguesa. 3 ed. São Paulo: Publifolha, 2010, p. 155.
[3] Abordei a temática do poder discente também aqui: http://professorsulo.blogspot.com.br/2012/11/de-sua-aula-moco.html
[4] Cf. COTRIM, Gilberto; FERNANDES; Mirna. Fundamentos de Filosofia.
[5] Cf. HAUSER, Arnold. Rococó, Classicismo, Romantismo. In: ________.História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

O professor, o retorno



Web

Há mais ou menos dois meses não publicava aqui no diário. Compreensível, considerando que estávamos em férias em boa parte desse período e não pude me confrontar com os incidentes próprios de sala de aula que me motivam a escrever pra esta página.

Mas eis as aulas em curso e minha pena novamente em ação. Pra começar em clima de mais um conflito, pois, diferentemente do poeta não pude me conter “em face do maior encanto” – a possibilidade já quase realizada de um novo emprego e toda a insipidez própria da realização de atividades que já se cogita abandonar.

Mas vamos às salas de aula. Novidades? Sim! Ou pelo menos avanços, melhorias pontuais, relativas. É evidente a ampliação, ainda que mínima, do círculo de leitores, principalmente aqueles ávidos pelas sequências ficcionais de Rick Riordan. Da minha parte continuo enfatizando (o que já parece até chato pra muitos) a necessidade da leitura constante e diversificada como condição para o sucesso escolar, profissional e a compreensão e transformação do mundo. E é exatamente a ausência da leitura que dificulta a compreensão das noções simples de filosofia ou sociologia ou o contato com a produção literária em geral. Numa aula sobre o conto não é estranho ouvir de alunos a quem pedi que lessem um exemplar machadiano – “Que invenção, essa sua, professor!” ou reclamações sobre o número de páginas do texto, que eram três. Relacione a isso o padrão do material didático ao impor conceitos, noções, níveis de leitura e discussão que parecem enquadrar um perfil típico de aluno – o leitor, o curioso, o estudante.

Uma dificuldade sempre latente na sala de aula é a aquela, enorme, que têm os alunos de lidar com o princípio voltairiano do respeito à liberdade de expressão. Aliás, foi um dos poucos elementos contratuais que discuti em sala de aula – o respeito à fala do outro, ainda que ingênua. Em oposição à luta “até o fim” pela direito à fala do outro pereniza-se a zombaria, muitas vezes, a indiferença, a hostilidade própria aos que não sabem o que é estudar porque nunca viram um exemplo real disto conforme o fazem as classes ou grupos que depositam na aprendizagem do saber convencional a permanência secular que esses estratos usufruem na hierarquia social.

Obviamente que esse retrato não é totalmente  homogêneo. Há alunos que fazem valer a pena qualquer sacrifício docente, que fazem ressurgir o ânimo dos que acreditam ser a escolarização do oprimido um ato de rebeldia contra o status quo. Mas esse número é dos que se obscurecem em face da turba misosófica.

Enfim, vamos ver como as coisas se processarão nestes dias de dilemas e conflitos entre as novas oportunidades de trabalho e a missão de educar os não esclarecidos. Uma coisa é certa: que as massas nasceram para as cavernas da ignorância e que estão dispostas a hostilizar, quase sempre, qualquer um que se arrogue a posição de esclarecedor, de parteiro de ideias, e o exemplo de Sócrates é sempre eloquente pra corroborar isso.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Desfolhando cadernos no final do ano




Uma tradição escolar marca o público estudantil em algumas cidades pelas quais já passei: a ação de se desfolhar os cadernos no último dia de aula, a ponto de se criarem quase que verdadeiros tapetões brancos no decorrer de um raio de mais ou menos meio quilômetro de distância da escola. Muitos de nós já se dispuseram a apresentar análises desse fenômeno tão velho quanto eu, até onde sei, e pretendo aqui também apresentar minhas hipóteses sobre ele.

Pra começar imagino que tenha muito a ver com a mentalidade popular de aversão à escola, para a qual a chegada das férias representa não só um alívio, mas uma verdadeira oportunidade de se dizer não a um conjunto de atividades que não são de nenhum interesse para um estrato social que não vê no saber escolar qualquer coisa de atrativo. Assim, desfolhar o caderno representaria romper as amarras do sistema escolar que pretendeu, em toda a extensão do ano letivo, salvo o mês de julho, o das férias, fazer descer goela abaixo elementos culturais totalmente estranhos a uma clientela que não dispõe de um hábitus que seja condescendente com a fruição ou aprendizagem de conteúdos escolares.

Ocorre-me também que apenas alguns alunos destrocem seus cadernos, neste caso os aprovados. Mas aqui continuo no campo das hipóteses (não entrevistei nenhum aluno e não considero que poderia alcançar deles uma verdade espontânea e consciente sobre o fenômeno).

Uma terceira hipótese que apresento é a de que nem toda prática cultural é consciente. Neste sentido, por mais que algum significado algum dia esteve associado à prática de espalhar as folhas do caderno no caminho da escola prefiro acreditar que a reprodução do fenômeno hoje se dê de forma inconsciente. É como a reprodução de um simples elemento cultural desprovido de qualquer sentido mas que explica muito sobre a nossa disposição para reproduzir práticas culturais de forma inconsciente.

Como é um fenômeno visto por muitos como feio, subversivo, próprio dos mal educados ou indisciplinados, algo bárbaro ou primitivo, uma explicação adicional ainda seria a de que através dessa prática os alunos estariam exercendo sua sede de liberdade e inversão de valores sociais à semelhança do que ocorre em outros momentos na vida dos brasileiros. É assim, por exemplo, que Roberto Da Matta vê o carnaval (ou pelo menos o via nos anos 1980, quando escreveu “O que faz do brasil, Brasil?”). De acordo com esta interpretação, desfolhar o caderno ao se despedir da escola representaria experimentar atitudes que não puderam ser vivenciadas pessoalmente no interior de uma instituição tradicionalmente compreendida em termos foucaultianos, isto e, de vigilância e punição.

Mas paremos por aqui. E prometo que vou estudar o assunto.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Políticos na sala de aula

http://al.to.gov.br
Numa aula de sociologia hoje apresentei à turma os 24 deputados da Assembleia Legislativa do Tocantins. É uma turma de 3ª série e estamos estudando aspectos políticos, econômicos e étnicos do estado. Veio-me à mente o fato de que os alunos do ensino médio podem concluir o curso e não conhecerem sequer a quantidade de deputados que a nossa Assembleia Legislativa tem.

Mas a ideia não era apenas fazer conhecer os deputados aos alunos. Iniciei a aula falando-lhes sobre o fato de ano que vem ser ano eleitoral e não termos critérios definidos para escolhermos os candidatos – ou, aliás, nós os temos mas viciados, pois se baseiam no interesse pessoal ou simplesmente na indicação do cabo eleitoral, do representante político, do assessor, do pai, etc.

Orientei-lhes que estejam atentos à ideologia política à qual determinado candidato está filiado. O que na verdade é um problemão, pois não há ideologias políticas definidas no estado, ao que parece, pois os políticos mudam de partido sempre que a lei permite e fazem as pazes com aqueles que antes lhes pareciam inimigos mortais. De qualquer modo a ideologia política será um elemento importante quando o candidato souber que o eleitor a considera importante.

Além da ideologia política, que estivessem também, orientei-lhes, atentos ao segmento social representado por um candidato. Ele representa o empresariado, o agronegócio, os servidores públicos, os trabalhadores, a qualidade do ensino ou da saúde, a segurança, a qualidade das vias de transportes, etc.? Isso é essencial, pois muito provavelmente um defensor ferrenho do agronegócio não seja muito simpático às questões ambientais, ou um político afeito à indústria não privilegie os direitos trabalhistas. Entretanto, para que esses critérios comecem a ser observados pelos eleitores critérios viciados como os do interesse particular precisam ser preteridos. Há ainda aqueles que simplesmente defendem o governo, a governabilidade, ficando qualquer outro interesse em condição secundária. Esses políticos parecem beneficiar-se com essa atitude, na medida em que o acesso a cargos e funções em órgãos do estado lhes são disponibilizados, além de outros privilégios específicos dos que compõem a base do governo. Aliás, até a mentalidade popular parece não reconhecer vantagens em políticos de oposição, pois estes não podem ajudar a ninguém.

Depois disso passamos a observar os deputados tocantinenses dispostos em página específica do site da Assembleia Legislativa[1], alguns familiares, outros não, alguns tão díspares e distantes, outros “do quintal de casa”. Isso não importa – ano que vem provavelmente baterão às nossas portas e confrontá-los de forma responsável tornará nosso estado melhor e, por extensão, nosso país.



[1] Cf. <http://www.al.to.gov.br/perfil> Acesso em 27/11/2013.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Piaget na sala de aula

Web
O legal de se ter lido Jean Piaget (ou sobre ele) é que o caráter empírico de suas teses são revividos em nossas experiências cotidianas. É assim que sei que quando meu filho, que está no pré-escolar, escreve a palavra “GATO” utilizando apenas as vogais “A” e “O”, é porque ele encontra-se numa fase de construção da escrita alfabética denominada de hipótese silábico-alfabética[1]. Não tenho uma compreensão de todas as fases desse processo, mas sempre que me deparo com a hipótese silábico-alfabético a consigo reconhecer e valorizar a obra do psicogeneticista suíço.

Observar meu filho caçula durante os jogos com amiguinhos ainda me permite perceber uma dimensão constituinte da obra piagetiana, que é sua teoria moral.  Vê-lo mudar as regras do jogo a cada sinal de derrota ou ameaçar recomeçá-lo é um traço específico da fase de desenvolvimento da moralidade em que a consciência das regras por parte da criança é praticamente inexistente ou que não é objeto de reflexão. Na escola posso reconhecer, vez por outra e, ainda que grosseiramente, o caráter egocêntrico próprio das crianças perceptível em alunos que já deveriam ter passado à fase da autonomia moral e que já deveriam reconhecer a importância da solidariedade no convívio social. É o caso dos que fazem biquinhos, ameaçando não fazer as atividades quando os livros da biblioteca não existem em número suficiente para cada aluno numa determinada aula e você faz cópias do texto para alguns, ou daqueles que olham cada cópia dos colegas para saber se são exatamente iguais à sua, etc. É muito comum ainda o comportamento heterônomo dos que cumprem a regra por medo das punições.[2]

Se, portanto, a teoria de Piaget previa que nem todos desenvolvem a moralidade até a fase da autonomia podemos assumir que mesmo a anomia, enquanto primeiro estágio do desenvolvimento moral, é bastante frequente nas escolas de ensino fundamental e médio. Acredito, entretanto, que os adolescentes não ignoram as regras em razão de uma completa ignorância destas ou dos processos de convenção social aí inerentes, mas sim por conta do exacerbado individualismo que faz boa, com plena consciência do sujeito moral, a regra que me faz bem ainda que em prejuízo dos outros.




[1] Para uma compreensão das várias fases de aprendizagem da escrita alfabética conferir <http://revistaescola.abril.com.br/avulsas/teste-hipoteses-de-escrita-dos-alunos.shtml> Acesso em 18/11/2013.
[2] Para uma compreensão mais apurada dessas fases do desenvolvimento do juízo moral na criança leia-se O juízo moral na criança, de Jean Piaget.

domingo, 10 de novembro de 2013

Ouvir ou não ouvir Djavan

Djavan (Web)
Um dia desses presenciava uma troca de ofensas entre amigos por causa de gostos musicais.[1] Um deles, como que fugindo às origens do grupo social de relações imediatas, estaria ouvindo Djavan com a companheira. Para o outro amigo não é o tipo de música que se ouve ou vê senão em momentos em que se quer dormir e a música serviria, então, de canção de ninar. Para aquela hora da noite – ou do dia – cairia melhor um Aviões do Forró ou qualquer outra música embalada. O outro amigo revidava ao afirmar que seu interlocutor “não tem cultura”.

Três conclusões me chamaram à atenção durante a discussão dos amigos: 1) Djavan não é cantor para as massas; 2) Ouvir Djavan, mesmo que para agradar à companheira/ao companheiro, só faz sentido pra quem tem “cultura”; 3) Apreciar aquilo que não faz parte das práticas culturais regulares de nosso grupo de contatos imediatos pode atrair a crítica zombeteira desse grupo e o gradual isolamento de quem se aventura por mundos culturais que não o seu.

Devo dizer que não pretendo discutir essas conclusões, mas dizer ainda que a discussão me chamou à atenção por dois motivos. Primeiro porque considero que muito do meu gosto cultural não é direcionado para os mesmos elementos culturais dos grupos em que estou imediatamente em contato; segundo, porque a reflexão sobre o gosto artístico é um dos temas que pretendo desenvolver na disciplina de filosofia na 3ª série do ensino médio até o final das aulas. O primeiro motivo já me vale a referência do “isolado” por parte de alguns. Minhas atividades diárias, que envolvem leitura, certos tipos de filmes além dos considerados normais e variações musicais que ouço praticamente sozinho justificam o meu suposto isolamento, enquanto que o segundo motivo tem me ajudado a compreender que não sou diferente no sentido de que teria um espírito mais agudo para confrontar meus sentidos ou intelecto com elementos considerados “superiores” da cultura, mas que a diversificação ou direcionamento de meus sentidos e intelecto para esses elementos culturais ocorrem exatamente a partir do movimento iniciado com o exercício mesmo de atividades que gradativamente direcionam nosso gosto para novos elementos.

É exatamente neste sentido que tem sua razão de ser a expressão “tem cultura” ou “não tem cultura”, embora tais expressões sejam em si mesmas preconceituosas ao reduzir a cultura aos elementos artísticos da cultura erudita.

Já discuti com os alunos que a arte precisa ser compreendida também a partir do contexto de sua produção, o que nos remete às ideias de arte erudita, arte popular e arte de massas. Neste sentido não se poderia dizer que as massas ou que a população que não tem acesso às culturas consideradas mais elevadas do saber e da ciência não têm cultura, mas sim que, por fazerem parte de contextos de relações reais diferentes em vários aspectos, produzem e compartilham de elementos culturais distintos dos das classes abastadas. Assim, do mesmo modo como as classes da alta cultura produzem e socializam toda uma produção artística que encontra no interior dessas mesmas classes altas uma linguagem comum, matizada de elementos filosóficos, científicos e linguísticos que diferem dos das classes baixas, assim também é correto dizer que a arte e cultura populares, a seu modo e a partir dos saberes de que dispõe, expressa a mesma tentativa de atribuir significado às demandas existenciais em que tais classes estão inseridas. Neste sentido, a arte popular não seria uma aparência de arte, das artes eruditas, mas compartilharia com estas as mesmas pretensões de dar sentido à vida ao mesmo tempo em que realiza sua função de envolver os sentidos humanos numa aventura sinestésica que é muitas vezes indicada como a principal função da arte. Apenas a arte de massa apresenta diferenças em relação às anteriores no que diz respeito à sua funcionalidade, uma vez que a de massas se presta a anestesiar as massas para não perceberem a complexidade do real e a induzirem para os propósitos do consumo e, consequentemente, da acumulação capitalista.

É nesse ponto em que pretendo intervir enquanto professor: ajudar os alunos a compreender que o seu gosto por esta ou aquela música, por esta ou aquela atividade ou programação televisiva é construída nos contextos de relações sociais imediatas do grupo de que fazem parte, da mesma forma que o gosto artístico das classes altas. Estas alegavam ser algo inato o seu gosto cultural, tese derrubada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu e apresentada em sua obra A distinção: crítica social do julgamento. A tese termina também por derrubar a ideia de que se não compartilhamos do gosto cultural das elites isso se dá em razão de nosso próprio nascimento, de sangue comum.

Disso tudo podemos concluir que uma formação que preza os elementos da cultura erudita naturalmente induzirá alguém a se aproximar dos valores culturais das classes altas, o que não deverá implicar, naturalmente, em abandonar os elementos da cultura popular sob pretexto de que não é cultura. Do mesmo modo, o envolvimento completo das massas pela produção artística destinada à alienação das classes baixas denuncia a má formação destas como fator de permanência nas situações de alienação.

E poderíamos muito bem curtir Djavan ao mesmo tempo em que valorizamos nossas práticas culturais locais, em prejuízo da hegemonia da cultura de massas alienada e alienante.  





[1] Seguem dois textos, dentre vários outros, que contribuíram para esta escrita: <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/uma-introducao-a-pierre-bourdieu/> e <http://www.infoescola.com/artes/o-que-e-arte/>

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Sobre a Liberdade

Web
Neste bimestre um dos temas de discussão em filosofia no ensino médio é a liberdade. Aprendi que os alunos têm uma concepção de liberdade que precisa ser compreendida devidamente antes que se discuta qualquer ideia sobre o assunto própria das discussões filosóficas, sob pena de essas discussões terminarem improdutivas.

A ideia geral de liberdade mantida pelos alunos é a de ausência de impedimentos para se fazer algo. É uma ideia de liberdade que também considero válida, posto que difundida, compreendida e utilizada cotidianamente nas interações com os outros. Alguns alunos em geral dizem que não somos livres se há leis ou regras que nos impedem de fazermos o que temos vontade de fazer num dado momento.

Ao introduzir o estudo da liberdade a partir de vários autores discuti com alguns alunos, a começar pela obra de Guilherme de Ockham, que a liberdade, ainda que signifique a possibilidade de se escolher entre o sim e o não envolve também assumir a responsabilidade pela decisão tomada. Neste sentido, digo aos alunos, a presença da lei não é impeditiva da liberdade humana, mas orientadora (como bem observou uma aluna durante uma discussão) ou punitiva para as escolhas que interferem no equilíbrio das relações humanas. A lei não é um impedimento às ações humanas e isso pode ser exemplificado inclusive pela desobediência às regras em geral que orientam ou punem as relações interpessoais.

Costumo chamar a atenção dos alunos para um aspecto especial em relação à liberdade, que é se quando agimos o fazemos livremente ou se somos simplesmente induzidos inconscientemente para praticarmos ações que na verdade não escolhemos praticá-las. Os alunos em geral acreditam-se livres, neste aspecto, sobretudo ao mencionarem animosamente a liberdade de ação em relação à tutela dos pais nos dia atuais. Noutras palavras, consideram-se absolutamente livres enquanto sujeitos de ação. Naturalmente referem-se à possibilidade de irem às festas sem pedir ou submeterem-se a horários, vestirem-se como querem, namorarem livremente e agirem em geral diferentemente de como os jovens de há algumas décadas atrás agiam.

Certa vez lhes confrontei afirmando que o fato de os pais terem perdido poder sobre a conduta dos filhos não os torna agora livres como pensam. Digo-lhes que houve uma simples troca de submissão, daquela dos pais para a dos padrões normativos ditados pelos meios de comunicação, que estabelecem modos de ser e agir específicos para os jovens das gerações atuais. Pergunto-lhes que músicas ouvem, que filmes veem, a que programações televisivas assistem, que roupas vestem, que esportes praticam, que penteado exibem e o que leem ou por que não leem. Se os pais não mais controlam esses gostos dos filhos não significa que eles próprios os escolhem, mas que simplesmente aderem aos padrões estabelecidos pelas propagandas em geral. Alguém poderia julgar livre um jovem que exibe um moicano e biruta um que usa calças jeans lisas tradicionais. Mas perguntemos: quem está fugindo de padrões estabelecidos? Quem mais parece livre?

Não se trata de relacionar liberdade à subversão pura e simples mas de estimular a reflexão sobre se há liberdade quando nosso comportamento é completamente condicionado pelo ambiente externo de forma inconsciente e se há alguém que ganha com isso.

A discussão sobre a liberdade, que começou com Ockham, continuará com Etienne de Lá Boètie, Rousseau e Sartre. Até lá espero aprender bastante com meus alunos sobre a liberdade e até que ponto somos ou não livres.