domingo, 10 de novembro de 2013

Ouvir ou não ouvir Djavan

Djavan (Web)
Um dia desses presenciava uma troca de ofensas entre amigos por causa de gostos musicais.[1] Um deles, como que fugindo às origens do grupo social de relações imediatas, estaria ouvindo Djavan com a companheira. Para o outro amigo não é o tipo de música que se ouve ou vê senão em momentos em que se quer dormir e a música serviria, então, de canção de ninar. Para aquela hora da noite – ou do dia – cairia melhor um Aviões do Forró ou qualquer outra música embalada. O outro amigo revidava ao afirmar que seu interlocutor “não tem cultura”.

Três conclusões me chamaram à atenção durante a discussão dos amigos: 1) Djavan não é cantor para as massas; 2) Ouvir Djavan, mesmo que para agradar à companheira/ao companheiro, só faz sentido pra quem tem “cultura”; 3) Apreciar aquilo que não faz parte das práticas culturais regulares de nosso grupo de contatos imediatos pode atrair a crítica zombeteira desse grupo e o gradual isolamento de quem se aventura por mundos culturais que não o seu.

Devo dizer que não pretendo discutir essas conclusões, mas dizer ainda que a discussão me chamou à atenção por dois motivos. Primeiro porque considero que muito do meu gosto cultural não é direcionado para os mesmos elementos culturais dos grupos em que estou imediatamente em contato; segundo, porque a reflexão sobre o gosto artístico é um dos temas que pretendo desenvolver na disciplina de filosofia na 3ª série do ensino médio até o final das aulas. O primeiro motivo já me vale a referência do “isolado” por parte de alguns. Minhas atividades diárias, que envolvem leitura, certos tipos de filmes além dos considerados normais e variações musicais que ouço praticamente sozinho justificam o meu suposto isolamento, enquanto que o segundo motivo tem me ajudado a compreender que não sou diferente no sentido de que teria um espírito mais agudo para confrontar meus sentidos ou intelecto com elementos considerados “superiores” da cultura, mas que a diversificação ou direcionamento de meus sentidos e intelecto para esses elementos culturais ocorrem exatamente a partir do movimento iniciado com o exercício mesmo de atividades que gradativamente direcionam nosso gosto para novos elementos.

É exatamente neste sentido que tem sua razão de ser a expressão “tem cultura” ou “não tem cultura”, embora tais expressões sejam em si mesmas preconceituosas ao reduzir a cultura aos elementos artísticos da cultura erudita.

Já discuti com os alunos que a arte precisa ser compreendida também a partir do contexto de sua produção, o que nos remete às ideias de arte erudita, arte popular e arte de massas. Neste sentido não se poderia dizer que as massas ou que a população que não tem acesso às culturas consideradas mais elevadas do saber e da ciência não têm cultura, mas sim que, por fazerem parte de contextos de relações reais diferentes em vários aspectos, produzem e compartilham de elementos culturais distintos dos das classes abastadas. Assim, do mesmo modo como as classes da alta cultura produzem e socializam toda uma produção artística que encontra no interior dessas mesmas classes altas uma linguagem comum, matizada de elementos filosóficos, científicos e linguísticos que diferem dos das classes baixas, assim também é correto dizer que a arte e cultura populares, a seu modo e a partir dos saberes de que dispõe, expressa a mesma tentativa de atribuir significado às demandas existenciais em que tais classes estão inseridas. Neste sentido, a arte popular não seria uma aparência de arte, das artes eruditas, mas compartilharia com estas as mesmas pretensões de dar sentido à vida ao mesmo tempo em que realiza sua função de envolver os sentidos humanos numa aventura sinestésica que é muitas vezes indicada como a principal função da arte. Apenas a arte de massa apresenta diferenças em relação às anteriores no que diz respeito à sua funcionalidade, uma vez que a de massas se presta a anestesiar as massas para não perceberem a complexidade do real e a induzirem para os propósitos do consumo e, consequentemente, da acumulação capitalista.

É nesse ponto em que pretendo intervir enquanto professor: ajudar os alunos a compreender que o seu gosto por esta ou aquela música, por esta ou aquela atividade ou programação televisiva é construída nos contextos de relações sociais imediatas do grupo de que fazem parte, da mesma forma que o gosto artístico das classes altas. Estas alegavam ser algo inato o seu gosto cultural, tese derrubada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu e apresentada em sua obra A distinção: crítica social do julgamento. A tese termina também por derrubar a ideia de que se não compartilhamos do gosto cultural das elites isso se dá em razão de nosso próprio nascimento, de sangue comum.

Disso tudo podemos concluir que uma formação que preza os elementos da cultura erudita naturalmente induzirá alguém a se aproximar dos valores culturais das classes altas, o que não deverá implicar, naturalmente, em abandonar os elementos da cultura popular sob pretexto de que não é cultura. Do mesmo modo, o envolvimento completo das massas pela produção artística destinada à alienação das classes baixas denuncia a má formação destas como fator de permanência nas situações de alienação.

E poderíamos muito bem curtir Djavan ao mesmo tempo em que valorizamos nossas práticas culturais locais, em prejuízo da hegemonia da cultura de massas alienada e alienante.  





[1] Seguem dois textos, dentre vários outros, que contribuíram para esta escrita: <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/uma-introducao-a-pierre-bourdieu/> e <http://www.infoescola.com/artes/o-que-e-arte/>

Nenhum comentário :

Postar um comentário