terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Desfolhando cadernos no final do ano




Uma tradição escolar marca o público estudantil em algumas cidades pelas quais já passei: a ação de se desfolhar os cadernos no último dia de aula, a ponto de se criarem quase que verdadeiros tapetões brancos no decorrer de um raio de mais ou menos meio quilômetro de distância da escola. Muitos de nós já se dispuseram a apresentar análises desse fenômeno tão velho quanto eu, até onde sei, e pretendo aqui também apresentar minhas hipóteses sobre ele.

Pra começar imagino que tenha muito a ver com a mentalidade popular de aversão à escola, para a qual a chegada das férias representa não só um alívio, mas uma verdadeira oportunidade de se dizer não a um conjunto de atividades que não são de nenhum interesse para um estrato social que não vê no saber escolar qualquer coisa de atrativo. Assim, desfolhar o caderno representaria romper as amarras do sistema escolar que pretendeu, em toda a extensão do ano letivo, salvo o mês de julho, o das férias, fazer descer goela abaixo elementos culturais totalmente estranhos a uma clientela que não dispõe de um hábitus que seja condescendente com a fruição ou aprendizagem de conteúdos escolares.

Ocorre-me também que apenas alguns alunos destrocem seus cadernos, neste caso os aprovados. Mas aqui continuo no campo das hipóteses (não entrevistei nenhum aluno e não considero que poderia alcançar deles uma verdade espontânea e consciente sobre o fenômeno).

Uma terceira hipótese que apresento é a de que nem toda prática cultural é consciente. Neste sentido, por mais que algum significado algum dia esteve associado à prática de espalhar as folhas do caderno no caminho da escola prefiro acreditar que a reprodução do fenômeno hoje se dê de forma inconsciente. É como a reprodução de um simples elemento cultural desprovido de qualquer sentido mas que explica muito sobre a nossa disposição para reproduzir práticas culturais de forma inconsciente.

Como é um fenômeno visto por muitos como feio, subversivo, próprio dos mal educados ou indisciplinados, algo bárbaro ou primitivo, uma explicação adicional ainda seria a de que através dessa prática os alunos estariam exercendo sua sede de liberdade e inversão de valores sociais à semelhança do que ocorre em outros momentos na vida dos brasileiros. É assim, por exemplo, que Roberto Da Matta vê o carnaval (ou pelo menos o via nos anos 1980, quando escreveu “O que faz do brasil, Brasil?”). De acordo com esta interpretação, desfolhar o caderno ao se despedir da escola representaria experimentar atitudes que não puderam ser vivenciadas pessoalmente no interior de uma instituição tradicionalmente compreendida em termos foucaultianos, isto e, de vigilância e punição.

Mas paremos por aqui. E prometo que vou estudar o assunto.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Políticos na sala de aula

http://al.to.gov.br
Numa aula de sociologia hoje apresentei à turma os 24 deputados da Assembleia Legislativa do Tocantins. É uma turma de 3ª série e estamos estudando aspectos políticos, econômicos e étnicos do estado. Veio-me à mente o fato de que os alunos do ensino médio podem concluir o curso e não conhecerem sequer a quantidade de deputados que a nossa Assembleia Legislativa tem.

Mas a ideia não era apenas fazer conhecer os deputados aos alunos. Iniciei a aula falando-lhes sobre o fato de ano que vem ser ano eleitoral e não termos critérios definidos para escolhermos os candidatos – ou, aliás, nós os temos mas viciados, pois se baseiam no interesse pessoal ou simplesmente na indicação do cabo eleitoral, do representante político, do assessor, do pai, etc.

Orientei-lhes que estejam atentos à ideologia política à qual determinado candidato está filiado. O que na verdade é um problemão, pois não há ideologias políticas definidas no estado, ao que parece, pois os políticos mudam de partido sempre que a lei permite e fazem as pazes com aqueles que antes lhes pareciam inimigos mortais. De qualquer modo a ideologia política será um elemento importante quando o candidato souber que o eleitor a considera importante.

Além da ideologia política, que estivessem também, orientei-lhes, atentos ao segmento social representado por um candidato. Ele representa o empresariado, o agronegócio, os servidores públicos, os trabalhadores, a qualidade do ensino ou da saúde, a segurança, a qualidade das vias de transportes, etc.? Isso é essencial, pois muito provavelmente um defensor ferrenho do agronegócio não seja muito simpático às questões ambientais, ou um político afeito à indústria não privilegie os direitos trabalhistas. Entretanto, para que esses critérios comecem a ser observados pelos eleitores critérios viciados como os do interesse particular precisam ser preteridos. Há ainda aqueles que simplesmente defendem o governo, a governabilidade, ficando qualquer outro interesse em condição secundária. Esses políticos parecem beneficiar-se com essa atitude, na medida em que o acesso a cargos e funções em órgãos do estado lhes são disponibilizados, além de outros privilégios específicos dos que compõem a base do governo. Aliás, até a mentalidade popular parece não reconhecer vantagens em políticos de oposição, pois estes não podem ajudar a ninguém.

Depois disso passamos a observar os deputados tocantinenses dispostos em página específica do site da Assembleia Legislativa[1], alguns familiares, outros não, alguns tão díspares e distantes, outros “do quintal de casa”. Isso não importa – ano que vem provavelmente baterão às nossas portas e confrontá-los de forma responsável tornará nosso estado melhor e, por extensão, nosso país.



[1] Cf. <http://www.al.to.gov.br/perfil> Acesso em 27/11/2013.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Piaget na sala de aula

Web
O legal de se ter lido Jean Piaget (ou sobre ele) é que o caráter empírico de suas teses são revividos em nossas experiências cotidianas. É assim que sei que quando meu filho, que está no pré-escolar, escreve a palavra “GATO” utilizando apenas as vogais “A” e “O”, é porque ele encontra-se numa fase de construção da escrita alfabética denominada de hipótese silábico-alfabética[1]. Não tenho uma compreensão de todas as fases desse processo, mas sempre que me deparo com a hipótese silábico-alfabético a consigo reconhecer e valorizar a obra do psicogeneticista suíço.

Observar meu filho caçula durante os jogos com amiguinhos ainda me permite perceber uma dimensão constituinte da obra piagetiana, que é sua teoria moral.  Vê-lo mudar as regras do jogo a cada sinal de derrota ou ameaçar recomeçá-lo é um traço específico da fase de desenvolvimento da moralidade em que a consciência das regras por parte da criança é praticamente inexistente ou que não é objeto de reflexão. Na escola posso reconhecer, vez por outra e, ainda que grosseiramente, o caráter egocêntrico próprio das crianças perceptível em alunos que já deveriam ter passado à fase da autonomia moral e que já deveriam reconhecer a importância da solidariedade no convívio social. É o caso dos que fazem biquinhos, ameaçando não fazer as atividades quando os livros da biblioteca não existem em número suficiente para cada aluno numa determinada aula e você faz cópias do texto para alguns, ou daqueles que olham cada cópia dos colegas para saber se são exatamente iguais à sua, etc. É muito comum ainda o comportamento heterônomo dos que cumprem a regra por medo das punições.[2]

Se, portanto, a teoria de Piaget previa que nem todos desenvolvem a moralidade até a fase da autonomia podemos assumir que mesmo a anomia, enquanto primeiro estágio do desenvolvimento moral, é bastante frequente nas escolas de ensino fundamental e médio. Acredito, entretanto, que os adolescentes não ignoram as regras em razão de uma completa ignorância destas ou dos processos de convenção social aí inerentes, mas sim por conta do exacerbado individualismo que faz boa, com plena consciência do sujeito moral, a regra que me faz bem ainda que em prejuízo dos outros.




[1] Para uma compreensão das várias fases de aprendizagem da escrita alfabética conferir <http://revistaescola.abril.com.br/avulsas/teste-hipoteses-de-escrita-dos-alunos.shtml> Acesso em 18/11/2013.
[2] Para uma compreensão mais apurada dessas fases do desenvolvimento do juízo moral na criança leia-se O juízo moral na criança, de Jean Piaget.

domingo, 10 de novembro de 2013

Ouvir ou não ouvir Djavan

Djavan (Web)
Um dia desses presenciava uma troca de ofensas entre amigos por causa de gostos musicais.[1] Um deles, como que fugindo às origens do grupo social de relações imediatas, estaria ouvindo Djavan com a companheira. Para o outro amigo não é o tipo de música que se ouve ou vê senão em momentos em que se quer dormir e a música serviria, então, de canção de ninar. Para aquela hora da noite – ou do dia – cairia melhor um Aviões do Forró ou qualquer outra música embalada. O outro amigo revidava ao afirmar que seu interlocutor “não tem cultura”.

Três conclusões me chamaram à atenção durante a discussão dos amigos: 1) Djavan não é cantor para as massas; 2) Ouvir Djavan, mesmo que para agradar à companheira/ao companheiro, só faz sentido pra quem tem “cultura”; 3) Apreciar aquilo que não faz parte das práticas culturais regulares de nosso grupo de contatos imediatos pode atrair a crítica zombeteira desse grupo e o gradual isolamento de quem se aventura por mundos culturais que não o seu.

Devo dizer que não pretendo discutir essas conclusões, mas dizer ainda que a discussão me chamou à atenção por dois motivos. Primeiro porque considero que muito do meu gosto cultural não é direcionado para os mesmos elementos culturais dos grupos em que estou imediatamente em contato; segundo, porque a reflexão sobre o gosto artístico é um dos temas que pretendo desenvolver na disciplina de filosofia na 3ª série do ensino médio até o final das aulas. O primeiro motivo já me vale a referência do “isolado” por parte de alguns. Minhas atividades diárias, que envolvem leitura, certos tipos de filmes além dos considerados normais e variações musicais que ouço praticamente sozinho justificam o meu suposto isolamento, enquanto que o segundo motivo tem me ajudado a compreender que não sou diferente no sentido de que teria um espírito mais agudo para confrontar meus sentidos ou intelecto com elementos considerados “superiores” da cultura, mas que a diversificação ou direcionamento de meus sentidos e intelecto para esses elementos culturais ocorrem exatamente a partir do movimento iniciado com o exercício mesmo de atividades que gradativamente direcionam nosso gosto para novos elementos.

É exatamente neste sentido que tem sua razão de ser a expressão “tem cultura” ou “não tem cultura”, embora tais expressões sejam em si mesmas preconceituosas ao reduzir a cultura aos elementos artísticos da cultura erudita.

Já discuti com os alunos que a arte precisa ser compreendida também a partir do contexto de sua produção, o que nos remete às ideias de arte erudita, arte popular e arte de massas. Neste sentido não se poderia dizer que as massas ou que a população que não tem acesso às culturas consideradas mais elevadas do saber e da ciência não têm cultura, mas sim que, por fazerem parte de contextos de relações reais diferentes em vários aspectos, produzem e compartilham de elementos culturais distintos dos das classes abastadas. Assim, do mesmo modo como as classes da alta cultura produzem e socializam toda uma produção artística que encontra no interior dessas mesmas classes altas uma linguagem comum, matizada de elementos filosóficos, científicos e linguísticos que diferem dos das classes baixas, assim também é correto dizer que a arte e cultura populares, a seu modo e a partir dos saberes de que dispõe, expressa a mesma tentativa de atribuir significado às demandas existenciais em que tais classes estão inseridas. Neste sentido, a arte popular não seria uma aparência de arte, das artes eruditas, mas compartilharia com estas as mesmas pretensões de dar sentido à vida ao mesmo tempo em que realiza sua função de envolver os sentidos humanos numa aventura sinestésica que é muitas vezes indicada como a principal função da arte. Apenas a arte de massa apresenta diferenças em relação às anteriores no que diz respeito à sua funcionalidade, uma vez que a de massas se presta a anestesiar as massas para não perceberem a complexidade do real e a induzirem para os propósitos do consumo e, consequentemente, da acumulação capitalista.

É nesse ponto em que pretendo intervir enquanto professor: ajudar os alunos a compreender que o seu gosto por esta ou aquela música, por esta ou aquela atividade ou programação televisiva é construída nos contextos de relações sociais imediatas do grupo de que fazem parte, da mesma forma que o gosto artístico das classes altas. Estas alegavam ser algo inato o seu gosto cultural, tese derrubada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu e apresentada em sua obra A distinção: crítica social do julgamento. A tese termina também por derrubar a ideia de que se não compartilhamos do gosto cultural das elites isso se dá em razão de nosso próprio nascimento, de sangue comum.

Disso tudo podemos concluir que uma formação que preza os elementos da cultura erudita naturalmente induzirá alguém a se aproximar dos valores culturais das classes altas, o que não deverá implicar, naturalmente, em abandonar os elementos da cultura popular sob pretexto de que não é cultura. Do mesmo modo, o envolvimento completo das massas pela produção artística destinada à alienação das classes baixas denuncia a má formação destas como fator de permanência nas situações de alienação.

E poderíamos muito bem curtir Djavan ao mesmo tempo em que valorizamos nossas práticas culturais locais, em prejuízo da hegemonia da cultura de massas alienada e alienante.  





[1] Seguem dois textos, dentre vários outros, que contribuíram para esta escrita: <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/uma-introducao-a-pierre-bourdieu/> e <http://www.infoescola.com/artes/o-que-e-arte/>

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Sobre a Liberdade

Web
Neste bimestre um dos temas de discussão em filosofia no ensino médio é a liberdade. Aprendi que os alunos têm uma concepção de liberdade que precisa ser compreendida devidamente antes que se discuta qualquer ideia sobre o assunto própria das discussões filosóficas, sob pena de essas discussões terminarem improdutivas.

A ideia geral de liberdade mantida pelos alunos é a de ausência de impedimentos para se fazer algo. É uma ideia de liberdade que também considero válida, posto que difundida, compreendida e utilizada cotidianamente nas interações com os outros. Alguns alunos em geral dizem que não somos livres se há leis ou regras que nos impedem de fazermos o que temos vontade de fazer num dado momento.

Ao introduzir o estudo da liberdade a partir de vários autores discuti com alguns alunos, a começar pela obra de Guilherme de Ockham, que a liberdade, ainda que signifique a possibilidade de se escolher entre o sim e o não envolve também assumir a responsabilidade pela decisão tomada. Neste sentido, digo aos alunos, a presença da lei não é impeditiva da liberdade humana, mas orientadora (como bem observou uma aluna durante uma discussão) ou punitiva para as escolhas que interferem no equilíbrio das relações humanas. A lei não é um impedimento às ações humanas e isso pode ser exemplificado inclusive pela desobediência às regras em geral que orientam ou punem as relações interpessoais.

Costumo chamar a atenção dos alunos para um aspecto especial em relação à liberdade, que é se quando agimos o fazemos livremente ou se somos simplesmente induzidos inconscientemente para praticarmos ações que na verdade não escolhemos praticá-las. Os alunos em geral acreditam-se livres, neste aspecto, sobretudo ao mencionarem animosamente a liberdade de ação em relação à tutela dos pais nos dia atuais. Noutras palavras, consideram-se absolutamente livres enquanto sujeitos de ação. Naturalmente referem-se à possibilidade de irem às festas sem pedir ou submeterem-se a horários, vestirem-se como querem, namorarem livremente e agirem em geral diferentemente de como os jovens de há algumas décadas atrás agiam.

Certa vez lhes confrontei afirmando que o fato de os pais terem perdido poder sobre a conduta dos filhos não os torna agora livres como pensam. Digo-lhes que houve uma simples troca de submissão, daquela dos pais para a dos padrões normativos ditados pelos meios de comunicação, que estabelecem modos de ser e agir específicos para os jovens das gerações atuais. Pergunto-lhes que músicas ouvem, que filmes veem, a que programações televisivas assistem, que roupas vestem, que esportes praticam, que penteado exibem e o que leem ou por que não leem. Se os pais não mais controlam esses gostos dos filhos não significa que eles próprios os escolhem, mas que simplesmente aderem aos padrões estabelecidos pelas propagandas em geral. Alguém poderia julgar livre um jovem que exibe um moicano e biruta um que usa calças jeans lisas tradicionais. Mas perguntemos: quem está fugindo de padrões estabelecidos? Quem mais parece livre?

Não se trata de relacionar liberdade à subversão pura e simples mas de estimular a reflexão sobre se há liberdade quando nosso comportamento é completamente condicionado pelo ambiente externo de forma inconsciente e se há alguém que ganha com isso.

A discussão sobre a liberdade, que começou com Ockham, continuará com Etienne de Lá Boètie, Rousseau e Sartre. Até lá espero aprender bastante com meus alunos sobre a liberdade e até que ponto somos ou não livres.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

A voz da consciência[1]




Web
O que nos orienta no que fazemos cotidianamente? A pergunta é pertinente porque acreditamos agir corretamente inclusive no nosso trabalho.


A ideia de que há algo exterior a nós que orienta nosso comportamento e nossas decisões parece bem antiga. Sócrates fala do seu demônio, que o orientava em sua missão de, através da maiêutica, aperfeiçoar os homens, trazendo à luz novas ideias assentadas na própria essência das noções que aqueles julgavam compreender e exercitar. Não se tratava de um mau demônio e muitas vezes Sócrates referia-se a ele como o deus.[2]


O cristianismo vai apresentar, através do apóstolo Paulo, a ideia de que mesmo os pagãos que não conheciam o decálogo hebreu disporiam da lei da consciência para os orientar. Compreende-se, a partir do que Paulo escreveu, que os preceitos universais de Deus constantes das duas tábuas seriam apreensíveis a qualquer homem de qualquer cultura.[3] Ninguém estaria, portanto, isento de um julgamento sob o pretexto de que ninguém lhe havia revelado a moral universal. O livro de Atos parece sugerir ainda a presença constante de um anjo que auxilia os cristãos, embora neste caso a orientação pareça estar substituída por uma ação de cunho protetora.[4] O medo moral de estar só parece ter surpreendido até mesmo Nietzsche, que vai supor conversas suas entre ele e sua sombra, embora seja sabido que a sombra, no caso do filósofo, pareça mais um elemento de diálogo do que de exteriorização de uma consciência orientadora.[5]


Enfim, é possível estar só no que diz respeito às orientações sobre o que fazemos? Jean-Paul Sartre, para quem somos condenados à liberdade, orienta aos homens que construam sua própria essência, que é sempre posterior à existência, fundamentados numa ideia de liberdade que assume a responsabilidade de si e dos outros.[6] O fato é que estamos rodeados de exemplos novos e antigos, elementos normativos das religiões e conteúdos do conhecimento das várias áreas que, a despeito de divergirem sobre a validade universal ou não de suas proposições, parecem suficientes para não nos deixarem num vazio de orientações em cada ação, decisão, atitude.





[1] Este texto não resulta de uma motivação de sala de aula, como os demais, mas de uma motivação de escrever que me acompanha sempre.

[2] Cf. PLATÃO. Apologia de Sócrates. São Paulo: Martin Claret.

[3] Cf. Romanos, cap. 1 e 2.

[4] Cf. Atos 12.15.

[5] Cf. Friedrich NIETZSCHE. O viajante e sua sombra.  São Paulo: Escala. Não li o livro inteiro, então posso estar enganado sobre as conclusões que fiz sobra a relação entre o filósofo e sua sombra.

[6] Cf. Jean Paul SARTRE. O existencialismo é um humanismo. Li uma versão digital.

sábado, 28 de setembro de 2013

Eva viu a uva



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Ensinar é defrontar-se com culturas política, econômica, social e educacional instituídas historicamente, ao sabor dos conflitos instaurados entre dominantes e dominados. Neste sentido ensinar é também tomar partido, posicionar-se em favor de uma educação emancipadora ou de uma outra, a que mantém o status quo injusto e aparentemente inexorável. Caso se opte pela militância em favor de uma educação emancipadora deve-se levar em conta tudo o que se opõe a esse tipo de formação dos educandos, dentre o que apresento alguns obstáculos: 1) uma cultura histórica de repúdio ao saber; 2) a especialização e 3) a mercadologização do saber. Analisemos cada um destes elementos.


       1. Uma cultura histórica de repúdio ao saber. Esta tese é defendida na obra Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e que pode ser resumida nas palavras de Antônio Cândido, ao enfatizar a satisfação do intelectual brasileiro com “... o saber aparente, cujo fim está em si mesmo e por isso deixa de aplicar-se a um alvo concreto, sendo procurado sobretudo como fator de prestígio para quem sabe”.[1] É muito provável que esse perfil de intelectual tenha sofrido alterações em sua formação nas últimas décadas, na medida em que o conflito entre mentalidade rural e urbana cedeu espaço em favor desta última, mas não deixa de ser coerente também imaginar que uma cultura de quinhentos anos não desaparece assim tão facilmente. O fato é que ainda hoje assistimos ao prestígio que tem o diploma em prejuízo do saber, a valorização do status de sabedor em prejuízo do sabedor de fato.


       2.       A especialização. Numa cultura de repúdio ao saber como a nossa é normal que se institucionalize também tão facilmente a cultura do especialista, uma vez que o cultivo do saber em geral só faz sentido a quem ama o saber pelo saber. Peter Burke cita o brasileiro Gilberto Freyre como um dos nossos únicos polímatas, a quem também se poderia chamar de um dos últimos dinossauros.[2] Burke lamenta sensivelmente a morte do “homem multifacetado”, expressão com que Jacob Burckhardt referiu-se a Leonardo da Vinci, um dos últimos polímatas,[3] a ponto de dizer que “como indivíduos, conhecemos menos do que nossos ancestrais, ou, mais exatamente, cada vez mais sobre cada vez menos.”[4]


       3.       A mercadologização do saber. Para Jean-François Lyotard, “o antigo princípio segundo o qual a aquisição do saber é indissociável da formação (bildung) do espírito, e mesmo da pessoa, cai e cairá cada vez mais em desuso.”[5] A tendência então será constituir-se uma relação com o saber como a que já se estabelece em geral entre os produtores e consumidores de mercadorias. Neste sentido, “o saber é e será produzido para ser vendido.”[6]


Uma análise destes três elementos constituintes da educação brasileira dá conta de sua complexidade e caráter antagônico à educação emancipadora. Os primeiro e terceiro pontos podem ser analisados inclusive ao mesmo tempo, e sua presença na escola pública básica são avassaladores na medida em que a mentalidade de alunos, pais e professores supervalorizam a certificação em prejuízo da aprendizagem significativa. O professor e a escola passam mesmo a representar simplesmente o papel de uma empresa fornecedora de saberes e documentos legais que insiram o aluno no contexto maior de produção e consumo cuja sombra se reflete já na escola. Em especial, o professor, mesmo o de escola pública, parece alvo de “pressões institucionais para que possa satisfazer incondicionalmente os caprichos infantis dos alunos, cada vez mais narcotizados pela infame lógica do ‘pagou, passou’”.[7] Ampliando a discussão para o segundo ponto, assistimos cada vez mais a uma valorização apenas do saber necessário à certificação, ficando de fora qualquer tipo de vinculações de ordem inter ou transdisciplinar que apresentem as relações de nexo entre este saber, resultado de relações de poder, e o mundo real, aquele dos conflitos de classes. Qualquer tentativa de ampliar a discussão tenderá a ser hostilizada, restando ao professor comerciante apenas a oferta de saberes ou “conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação.”[8]


Os horizontes, enfim, não parecem nada auspiciosos se considerarmos que as escolas em geral já operam segundo os critérios de mercadologização e especialização do saber, fato que gera um antagonismo acirrado nos espaços escolares entre as práticas mantenedoras do status quo, exatamente aquelas práticas que servem ao sistema, e aquelas que se identificam com uma educação emancipadora, que valorizam o saber pelo saber e por seu potencial de desestruturação das situações de dominação e exploração vigentes.


Que a percepção do conflito e das hostilidades que ele gera não sejam suficientes para fazer parar os idealistas. Creio, porém, que o peso das estruturas parece muito forte para esmiuçar qualquer tipo de postura que antagonize o estado atual de coisas.




[1] CÂNDIDO, Antonio. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo Companhia das Letras, p. 17.
[2] BURKE, Peter. O historiador como colunista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 182.
[3] O termo polímata designava, a partir do século XVII, os intelectuais que visavam ao enciclopedismo (cf. BURKE, ibidem, p. 179-80).
[4] BURKE, p. 181-2.
[5] Apud BITTENCOURT, Renato Nunes. Conhecimento à venda? Revista Filosofia Ciência & Vida, nº 78, p. 16.
[6] BITTENCOURT, ibidem, p. 16.
[7] Idem, p. 16-17.
[8] FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 45 ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, p. 65-66.