sábado, 28 de setembro de 2013

Eva viu a uva



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Ensinar é defrontar-se com culturas política, econômica, social e educacional instituídas historicamente, ao sabor dos conflitos instaurados entre dominantes e dominados. Neste sentido ensinar é também tomar partido, posicionar-se em favor de uma educação emancipadora ou de uma outra, a que mantém o status quo injusto e aparentemente inexorável. Caso se opte pela militância em favor de uma educação emancipadora deve-se levar em conta tudo o que se opõe a esse tipo de formação dos educandos, dentre o que apresento alguns obstáculos: 1) uma cultura histórica de repúdio ao saber; 2) a especialização e 3) a mercadologização do saber. Analisemos cada um destes elementos.


       1. Uma cultura histórica de repúdio ao saber. Esta tese é defendida na obra Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e que pode ser resumida nas palavras de Antônio Cândido, ao enfatizar a satisfação do intelectual brasileiro com “... o saber aparente, cujo fim está em si mesmo e por isso deixa de aplicar-se a um alvo concreto, sendo procurado sobretudo como fator de prestígio para quem sabe”.[1] É muito provável que esse perfil de intelectual tenha sofrido alterações em sua formação nas últimas décadas, na medida em que o conflito entre mentalidade rural e urbana cedeu espaço em favor desta última, mas não deixa de ser coerente também imaginar que uma cultura de quinhentos anos não desaparece assim tão facilmente. O fato é que ainda hoje assistimos ao prestígio que tem o diploma em prejuízo do saber, a valorização do status de sabedor em prejuízo do sabedor de fato.


       2.       A especialização. Numa cultura de repúdio ao saber como a nossa é normal que se institucionalize também tão facilmente a cultura do especialista, uma vez que o cultivo do saber em geral só faz sentido a quem ama o saber pelo saber. Peter Burke cita o brasileiro Gilberto Freyre como um dos nossos únicos polímatas, a quem também se poderia chamar de um dos últimos dinossauros.[2] Burke lamenta sensivelmente a morte do “homem multifacetado”, expressão com que Jacob Burckhardt referiu-se a Leonardo da Vinci, um dos últimos polímatas,[3] a ponto de dizer que “como indivíduos, conhecemos menos do que nossos ancestrais, ou, mais exatamente, cada vez mais sobre cada vez menos.”[4]


       3.       A mercadologização do saber. Para Jean-François Lyotard, “o antigo princípio segundo o qual a aquisição do saber é indissociável da formação (bildung) do espírito, e mesmo da pessoa, cai e cairá cada vez mais em desuso.”[5] A tendência então será constituir-se uma relação com o saber como a que já se estabelece em geral entre os produtores e consumidores de mercadorias. Neste sentido, “o saber é e será produzido para ser vendido.”[6]


Uma análise destes três elementos constituintes da educação brasileira dá conta de sua complexidade e caráter antagônico à educação emancipadora. Os primeiro e terceiro pontos podem ser analisados inclusive ao mesmo tempo, e sua presença na escola pública básica são avassaladores na medida em que a mentalidade de alunos, pais e professores supervalorizam a certificação em prejuízo da aprendizagem significativa. O professor e a escola passam mesmo a representar simplesmente o papel de uma empresa fornecedora de saberes e documentos legais que insiram o aluno no contexto maior de produção e consumo cuja sombra se reflete já na escola. Em especial, o professor, mesmo o de escola pública, parece alvo de “pressões institucionais para que possa satisfazer incondicionalmente os caprichos infantis dos alunos, cada vez mais narcotizados pela infame lógica do ‘pagou, passou’”.[7] Ampliando a discussão para o segundo ponto, assistimos cada vez mais a uma valorização apenas do saber necessário à certificação, ficando de fora qualquer tipo de vinculações de ordem inter ou transdisciplinar que apresentem as relações de nexo entre este saber, resultado de relações de poder, e o mundo real, aquele dos conflitos de classes. Qualquer tentativa de ampliar a discussão tenderá a ser hostilizada, restando ao professor comerciante apenas a oferta de saberes ou “conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação.”[8]


Os horizontes, enfim, não parecem nada auspiciosos se considerarmos que as escolas em geral já operam segundo os critérios de mercadologização e especialização do saber, fato que gera um antagonismo acirrado nos espaços escolares entre as práticas mantenedoras do status quo, exatamente aquelas práticas que servem ao sistema, e aquelas que se identificam com uma educação emancipadora, que valorizam o saber pelo saber e por seu potencial de desestruturação das situações de dominação e exploração vigentes.


Que a percepção do conflito e das hostilidades que ele gera não sejam suficientes para fazer parar os idealistas. Creio, porém, que o peso das estruturas parece muito forte para esmiuçar qualquer tipo de postura que antagonize o estado atual de coisas.




[1] CÂNDIDO, Antonio. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo Companhia das Letras, p. 17.
[2] BURKE, Peter. O historiador como colunista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 182.
[3] O termo polímata designava, a partir do século XVII, os intelectuais que visavam ao enciclopedismo (cf. BURKE, ibidem, p. 179-80).
[4] BURKE, p. 181-2.
[5] Apud BITTENCOURT, Renato Nunes. Conhecimento à venda? Revista Filosofia Ciência & Vida, nº 78, p. 16.
[6] BITTENCOURT, ibidem, p. 16.
[7] Idem, p. 16-17.
[8] FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 45 ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, p. 65-66.

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