quinta-feira, 21 de março de 2013

Controvérsias na sala de aula



Como professor e aluno de história já me confrontei com questões bastante controversas em sala de aula, enquanto aluno e na condição também de professor. Na maioria das vezes tento manter uma postura de neutralidade – isso é possível? – embora alguém de qualquer dos lados (criacionistas ou ateus), possa vislumbrar uma postura bem definida a partir daquilo que falo.

Ao iniciar as aulas de história este ano, na 1ª série do ensino médio, apresentei, depois de algumas questões introdutórias sobre a disciplina e o fazer históricos, uma lista resumida dos primeiros hominídeos, conforme divulgada em sites especializados e nos livros didáticos em geral. Um colega me perguntou se eu iria fazer algum contraponto com a bíblia e eu o respondi em tom negativo, que apresentaria argumentos avessos ao evolucionismo mas não a partir da bíblia.

Essa questão, que se insere no contexto maior do paradigma evolucionista – e por que não dizer, do dualismo cristianismo versus naturalismo ateísta – já é objeto de ampla discussão que mantenho com alguns amigos e colegas e acredito que estou aprendendo muito sobre isso, seja a partir de textos cristãos apologéticos ou de materiais assumidamente evolucionistas. Uma coisa é certa: quem se posiciona de qualquer dos lados em questão parece embebido dos mesmos elementos de defesa: alegação de racionalidade, empiria e muita fé, ainda que esta seja normalmente negada. Mais uma coisa: sou muito incipiente no assunto.

Ao apresentar a série mais ou menos resumida de supostos hominídeos aos alunos, começando pelo Sahelanthropus Tchadensis, seus mais ou menos 7 milhões de anos, até chegar no homo sapiens, passando inclusive pelos australopitecíneos, não deixei passar em branco a possibilidade de discutir determinados elementos que se reúnem e servem à vontade de quem quer fazer passar um discurso qualquer por verdadeiro. A maior parte desses fósseis pode muito bem não passar de espécies símias que, apesar de certas semelhanças com o homem atual, nunca representaram um elo de transição entre uma história evolutiva como a tão defendida nos últimos três séculos.

O mesmo ocorre ao tratar de outras temáticas. Ao abordar o multiculturalismo em aulas de história e sociologia é difícil não chamar à atenção ao aspecto circular e ilógico da questão no nível dos enunciados. Só pra constar, normalmente sou condescendente com esses temas em sala de aula, mas evito não deixar passar em branco uma discussão mais abrangente sobre eles. Por exemplo: posso orientar os alunos a serem tolerantes, condescendentes com todas as culturas, mesmo com as que apresentam elementos antagônicos; que aceitem que as culturas não devem ser comparadas com um padrão de civilização qualquer, mas que cada uma tem em si seus próprios critérios de validade e verdade. No entanto, ao lidar com isso no nível filosófico sempre os inquiro sobre a ideia de aceitar ideias antagônicas como verdadeiras. É o caso, por exemplo, de considerar o Cristianismo verdadeiro e sua noção de monoteísmo e ao mesmo tempo assumir que as diversas culturas politeístas, e até mesmo as ateístas, são também verdadeiras. Como lidar com isso no nível das crenças filosóficas?

Alguém poderá supor que minhas aulas são estranhas, esquisitas por conta desse ceticismo em relação ao “politicamente correto” do conhecimento. Por outro lado, dadas todas as possibilidades de transformações que ocorrem no saber não é possível ficar bitolado em ideias fixas.

sábado, 16 de março de 2013

Espaço interdisciplinar



Assumi algumas aulas de inglês este ano. Não lecionava inglês desde 2004, acho. Muita tensão e alguns vacilos – é impossível evitar alguns, diante dos quais alguns alunos reagem impassivelmente e mais pelo trabalho de corrigir uma palavra no caderno que pela gravidade do erro. O fato de estar cursando o quinto período do curso de Letras (português e inglês) me encorajou. Acredito que vamos ter sucesso, a despeito do que ainda continua sendo uma sala de aula: apatia, muita conversa fiada e irreflexão. Fernando Pessoa disse que o poeta é um fingidor; muitos alunos também, embora não tão discretos quanto o poeta.

As aulas de inglês não me impedem de filosofar, de refletir sobre o cotidiano escolar e o que fazemos na sala de aula. Hoje, ao propor um exercício depois de uma revisão sobre personal pronouns um aluno exaltou-se diante do fato de ter que escrever. Falei-lhe que esse tipo de coisa é naturalmente aquilo que um professor pede aos seus alunos. Isso me ensejou uma breve fala baseada num artigo que eu havia lido no intervalo entre o fim do turno vespertino e início do noturno. O artigo tratava da comercialização do ensino, a propósito do que vem ocorrendo com o saber no contexto do capitalismo, caso em que o conhecimento perde o seu valor de instrumento de atualização das potencialidades humanas para se transformar em item de consumo em espaços em que “quem tem dinheiro leva”... o diploma, óbvio! Isso é o que tem caracterizado sobretudo as instituições privadas de ensino superior, as quais por privilegiarem o lucro não estabelecem padrões mínimos de intelectualidade aos “clientes”. O gosto pelo saber, sua busca enquanto algo inerentemente próprio da formação humana, é preterido num contexto de coisificação das pessoas ante o poder irresistível do capital. A minha intenção com essa fala foi tentar explicar ao referido aluno que ele também, como muitos outros, não passava de vítima desse processo reificante.

A minha atitude docente interdisciplinar terminou por suscitar uma reivindicação de retorno à aula de inglês por parte de um outro aluno, que exclamou: “É aula de sociologia?”

Enfim, minha condição de professor de inglês não me impedirá de exercer a reflexão que as práticas interdisciplinares e transversais podem proporcionar em qualquer que seja a aula ou disciplina, principalmente quando nossos alunos ainda se apresentam como vítimas de um sistema de ensino que considera o saber do ponto de vista compartimentado e que não venceu ainda a luta contra o poder coisificador dos processos desumanizantes do capital.

segunda-feira, 11 de março de 2013

Ah! O amor...



Web

O tema do amor é parte integrante do currículo de filosofia da 2ª série do ensino médio e costuma ser um tema que, a princípio, chama muito à atenção aos alunos, sobretudo às alunas. Desnecessário falar que logo que percebem que a discussão sobre o amor transcende a análise do amor romântico ou mesmo das paixonites, muitos alunos parecem se desinteressar do tema.

Inicialmente costumo dialogar com eles sobre as mais variadas formas de amor: a maternal, a paternal e todas as ligadas pela consanguinidade, o amor agapé, o amor romântico, o Eros da antiguidade clássica grega e também discutimos sobre a paixão. As discussões são limitadas pela própria incapacidade minha de mobilizar muitos saberes e experiências que deem conta da complexidade que caracteriza todos esses amores.

Os amores consanguíneos, apresento-os sempre como instintivos. O agapé, a partir de 1 Co 13; o amor romântico, a partir de uma discussão sobre o que é paixão e o que é amor além de promover ainda um intenso debate sobre o seu fim na atualidade. Neste sentido, utilizo, para tratar do amor romântico, sua distinção da paixão e a ideia do fim do amor romântico, de alguns textos específicos: a obra Cristianismo puro e simples, de C. S. Lewis, o soneto de fidelidade, de Vinícius de Moraes, e alguns textos que circulam na web sobre o fim do amor romântico que utilizam autores como Zygmunt Baumann e Flávio Gikovate.

Para C. S. Lewis a paixão, puro instinto, distingue-se do amor pela característica deste de ser atividade, o que requer cultivo, vontade de amar. A paixão, na condição de instinto, tende a esvaziar-se tão logo se satisfaça nas primeiras vivências de um casal, embora possa durar até uma vida inteira. No caso de ir embora a paixão o amor pode suprir a relação com o afeto, o carinho, a vontade de amar, que pode fazer sobreviver uma relação “até que a morte os separe.”[1]

No caso do soneto de Vinícius de Moraes, utilizo-o para tratar da possibilidade do fim do amor que, a despeito disso, pode ser vivido intensamente: “Eu possa me dizer do amor (que tive):/ Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure.”[2]

A ideia do fim do amor romântico parece ser endossada por alguns autores que se identificam com a chamada pós-modernidade. É como se “viver um relacionamento plenamente satisfatório num mundo de contatos rápidos, de bens descartáveis, em que a próxima tentativa – ou o próximo clique – pode trazer resultados melhores do que os obtidos até então” não fosse mais possível.[3] De acordo com Zygmunt Baumann, "nunca houve tanta liberdade na escolha de parceiros, nem tanta variedade de modelos de relacionamentos, e, no entanto, nunca os casais se sentiram tão ansiosos e prontos para rever, ou reverter o rumo da relação"[4]. Na verdade, “a proximidade não exige mais a contiguidade física”[5] e vice-versa. Flávio Gikovate endossa essa ideia ao sugerir que "quanto mais o indivíduo for competente para viver sozinho, mais preparado estará para uma boa relação afetiva".[6] Sempre contraponho essa visão pessimista e determinista do amor àquela, cristã, de C. S. Lewis, o que rende uma discussão interessante entre os alunos.

O Eros grego, por outro lado, é de difícil tratamento, em razão da opinião vulgarizada dele como o cupido, ou o amor puramente erótico, físico. Atualmente orientei os alunos a perceberem as transformações por que passou o Eros grego desde Hesíodo até o Eros platônico. A compreensão de uma evolução do amor grego que culmina na contemplação do Belo em si (ou da produção no Belo) não é de fácil assimilação, o que requer uma compreensão mais geral da filosofia platônica. Eis, pois, a nossa missão neste bimestre!


[1] No momento não disponho dessa obra de Lewis. O que escrevo é resultado de uma leitura realizada em 2010.
[2] <http://pensador.uol.com.br/soneto_de_fidelidade/> Acesso em 11/03/2013. Grifo meu.
[3] http://jornaldedebates.uol.com.br/debate/amor-romantico-virou-mito/12338. Acesso em 10/02/2013.
[4] Apud http://jornaldedebates.uol.com.br/debate/amor-romantico-virou-mito/12338. Acesso em 10/02/2013.
[5] Idem.
[6] Apud http://jornaldedebates.uol.com.br/debate/amor-romantico-virou-mito/12338. Acesso em 10/02/2013.

sábado, 9 de março de 2013

O adeus de uma grande mulher e outras considerações

Edilene (Dila)
Não pude escrever nada por ocasião do último 8 de março. Exatamente ontem assisti e sofri o adeus de uma grande mulher, minha irmã Edilene, exemplo de força, coragem e solidariedade. Aproveito, entretanto, este momento posterior para falar dela e das mulheres em geral, sobretudo da forma como as tenho considerado em minha prática educativa.

Conforme deixou registrado no último escrito seu (ela fez vários textos mas os destruiu a todos), minha irmã fez de tudo pra nos privar de todo o sofrimento que se abatera sobre sua vida desde o início do ano. Em nenhum momento permitiu a presença de irmãos e pais junto dela e sempre se mostrou forte e consoladora a despeito de ela estar na condição de alvo de consolação e encorajamento. Mesmo alguns minutos antes da cirurgia ela me ligou e se colocou na situação de quem estava oferecendo consolo e encorajamento, ainda que vacilante e quase afônica, e, para minha dor e vergonha posterior, não retribuí no momento na mesma medida ou além dela.

A força e ânimo de Edilene é sinal da força da mulher que não é menor em grau ou extensão que a dos homens nem é a mulher inferior ao homem de maneira nenhuma que justifique qualquer forma de opressão daquelas. O semideus Aquiles empunhou uma espada tanto quanto a heroína francesa Joana D'Arc. Esta uma personagem história real, aquele um ser carregado dos ornamentos divinos próprios da mitologia dos gregos. E, ainda no contexto dos cantos homéricos, quem diria que Penélope foi inferior nos seus esforços contra os pretendentes – tão mais reais e cotidianos – aos de Ulisses contra as intempéries míticas de seu retorno à Ítaca!

A história, posto que espaço masculino, não está de todo esvaziada de evidências da presença feminina, a despeito da tentativa dos escritores de mantê-la sempre à parte. E os vestígios, ainda que alardeados apenas os que apresentam as marcas do homem, não silenciam quando são investigados do ponto de vista de uma história das mulheres. É fato, porém, que historicamente o que foi preservado o foi do ponto de vista de uma história dos homens.

Embora me faltem no momento elementos de pesquisa que deem conta dessas afirmações é inegável que a história do gênero humano é uma história de conflitos, tensões, de lutas em que predominou por muito tempo uma configuração social com papeis próprios para homens e mulheres em que estas foram submetidas a situações indignas, desumanas, cruéis, mas não de pura submissão, condescendência, e sim de conflitos mesmos, subversão, negociações, perdas e ganhos cujos benefícios parecem beneficiar as mulheres melhor no tempo presente.

Se na aparentemente tirânica Esparta as mulheres atenienses eram as que “davam à luz homens de verdade”, na Atenas democrática as mulheres e os escravos eram excluídos da cidadania. E foi uma mulher, Diotima, e não o homem Sócrates, que Platão escolheu para expressar a sublimidade do eros platônico. No Antigo Testamento hebraico as mulheres hebraicas também profetizavam ou exerciam muito grande influência em seus governos, o que demonstra a existência de espaços conquistados não por dádiva masculina, mas como evidência das tensões em torno da constituição dos papeis sociais em todo o tempo e lugar. No Novo Testamento, a despeito da visão geral que se mantém desse documento como espaço machista, sabemos da influência feminina na corte de Herodes e no serviço cristão da Igreja Primitiva. Na Idade Média, convencionalmente vista como escuridão machista e ignorante e submissão da mulher, sabemos também desses conflitos, principalmente das senhoras viúvas que precisavam se estabelecer em seus domínios quando da morte dos cavaleiros, enfrentando cortes compostas por homens e leis que as queriam maltratar[1]. Não se quer aqui subestimar a opressão masculina, mas afirmar que em vez da pura submissão houve o seu par, a resistência, que apesar de tudo não tornou a situação igualitária.

Enfim, e a título de encerramento, é preciso ver a história também como história das mulheres, da opressão mas também da resistência, da desigualdade de gênero mas também da luta contra a desigualdade. O momento presente parece ser um ápice dessas lutas, mais muito ainda falta, inclusive uma compreensão coerente do que é realmente a dignidade feminina, pois há confusão sobre o que seria isso. Uma questão a ser discutida é: que papeis são atribuídos hoje às mulheres e a quem servem? Sabemos que a lógica do capital submete as mulheres e a erotização feminina à logica do mercado sob a roupagem da liberdade sobre o próprio corpo. Há muitos outros aspectos da famigerada liberdade da mulher que precisam ser questionados hoje, pois isso favorece o direcionamento das lutas para o front em que elas de fato devem ser travadas. Esta é a minha forma de dar neste 09 de março o meu parabéns fora de data a todas as mulheres e lembrar a recente luta de minha irmã, uma grande mulher.


[1] Cf. MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média. 5 ed. São Paulo: Contexto, 2002, p. 35-38.