quarta-feira, 12 de junho de 2013

Em que medida o professor pode/deve interferir nos percursos de leitura dos alunos*



A leitura na escola só faz sentido se for uma leitura livre. É por isso que nas bibliotecas escolares há materiais de todos os tipos, textos de todos os gêneros, pois nem todos gostarão somente de romance infanto-juvenil ou de literatura de cordel. Pontificar sobre isso como o fez Harold Bloom, de forma negativa, ao questionar a validade da leitura da obra de J.K. Rowling (a saga Harry Potter), só contribui para agravar o quadro de aversão à leitura observável hoje nas escolas públicas brasileiras.

No caso de Bloom, isso pode ser resultado daquilo que Brandão denomina de “(...) preconceito em relação a determinadas obras que, por não pertencerem ao cânon, são consideradas não literárias”.[1] De um ponto de vista de fomentar a leitura na escola essas considerações não fazem sentido, cabendo ao aluno, inclusive com o auxílio dos professores, fazer considerações sobre essas questões valorativas depois de lida a obra.

Por outro lado, a saga Harry Potter também foi vítima de considerações religiosas sobre o caráter místico da obra e para um grande público de orientação evangélica essa leitura representaria a contaminação de mentes cristãs jovens com a bruxaria, o satanismo. Brandão também fala dessa reação nas redes sociais, por ele denominada de “apologia ao satanismo”.[2] Pode-se supor, porém, que essa reação é mais fruto de um anti-intelectualismo mais geral dos grupos religiosos populares do que uma avaliação bem feita que precedesse a uma recomendação sóbria aos jovens cristãos. O anti-intelectualismo cristão reduz todas as leituras somente à bíblia e sem considerações teológicas mais aprofundadas, quando o ideal seria promover nos meios eclesiásticos uma elaboração de um quadro de referência teológica e filosoficamente consistente com os princípios cristãos que servisse de modelo para os jovens julgarem todas as suas leituras a partir desse quadro. Há muitos cristãos eminentemente leitores e que não leem apenas teologia. O fato é que leem tudo sob uma consistente ótica cristã. O bom senso cristão não prescreveria uma espécie de index librorum proibitorum, mas prepararia os cristãos para lerem inclusive a saga Harry Potter.

Talvez esse seja o caminho que a escola – e os professores – também deve trilhar: em vez de selecionar entre este e aquele livro para aquisição ou indicação para os alunos que os preparasse para avaliarem as leituras feitas com autonomia e senso crítico.
*Atividade solicitada pela Faculdade para discutir a interferência do professor na leitura dos alunos, a partir da crítica feita por Harold Bloom à saga Harry Potter.





[1] Cf. Harry Potter: imagens de um mundo paralelo na sala de aula?, p. in: Revista Lumen et Virtus. Vol II, nº 5, 2011, p. 130.


[2] Idem, p. 128.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Aluno nota 10



O jovem deputado Ian

Hoje gostaria de falar nominalmente sobre um aluno da escola onde leciono. Trata-se do aluno Ian, recém-empossado como jovem deputado para um mandato de um ano a partir de projeto de lei de sua autoria selecionado num programa iniciado neste ano de 2013. Trata-se de um exemplo de resultados que podem ser conseguidos através de uma vida escolar marcada pela dedicação aos estudos, na contramão da maioria dos alunos de escolas públicas como a nossa. Aliás, é exemplo de que o pessimismo que muitas vezes se abate sobre nós, educadores, pode ser amenizado e, quem sabe, abandonado.


Ian é o tipo de aluno engajado com o saber. Leitor assíduo, já se apossou de minha incipiente biblioteca de um pouco mais de cem títulos, através de empréstimos frequentes. Sua leitura inclui muita filosofia, história e apologética cristã. Como frequenta também a biblioteca escolar é provável que sua leitura seja tão variada quanto constante, algo perceptível pela atuação em sala de aula ao posicionar-se categoricamente sobre temas de ordens diversas. O clima geral de aversão ao saber de sua turma, por outro lado, termina por impedir um engajamento seu maior nas aulas, seja por suscitar sentimentos avessos à sua pessoa, seja por não lhe servir de estímulo a uma posição de aluno cada vez mais engajado, suponho. Apesar disso sua figura inteligente torna-se evidente na sala, na escola e onde quer que vá. Desde 2011, quando retomei a atividade docente percebi o seu potencial e mesmo percebendo que teria que, na condição de professor, apresentar-me cada vez mais informado e preparado diante de Ian não hesitei nem tentei fazê-lo sucumbir ante o orgulho do professor que supostamente sabe mais. Certa vez ao delegar a um determinado grupo uma exposição sobre o pensamento de Durkheim surpreendi-me com a facilidade que tem Ian de, através da leitura, compreender um tema e apresenta-lo em público. Naquele momento lembrei-me de quantos professores que não apresentariam a mesma performance ali presenciada a despeito dos títulos ostentados por muitos que exercem o ofício docente.


Ao saber de última hora das inscrições para o programa Jovem Deputado Ian virou a noite elaborando um projeto que o selecionou para o atual mandato. Um projeto de próprio punho, pois nenhum professor o assessorou a ponto de se poder dizer que o jovem apenas representou uma ideia alheia, diferentemente de muitos outros jovens deputados que não agiram da mesma maneira.


O exemplo de Ian representa um indício importante de que a cultura de leitura por estudantes de escolas públicas é uma alternativa ao constante fracasso que se abate sobre essas escolas. Mas aí é que está o problema: como construir uma cultura de leitura na escola? Como vencer a influência de um cotidiano marcado pelo fluxo de informações e práticas que em nada contribuem para o estabelecimento de um verdadeiro papel de estudante? Ian é exemplo de resistência ao estereótipo de estudante difundido na mídia e nos contextos mais gerais assimilado por alunos de escolas públicas.


Talvez um dos caminho seja a escola efetivamente assumir, através daqueles que a fazem, um exemplo de amor ao saber livresco, na contramão da orientação rousseauniana de que as crianças apenas devem ter contato com livros a partir dos quinze anos. Na medida em que a escola se apresenta através de diretor, coordenadores e professores como praticante de uma cultura de estudos é possível arregimentar os alunos da escola para a mesma prática, ainda que não tão rapidamente. O problema é que muitas das atividades apresentadas nas escolas privilegiam sobremaneira quem rebola melhor, quem tem o corpo mais bonito segundo os padrões contemporâneos, quem dança melhor uma determinada música representante de uma cultura de periferia descomprometida com a formação dos jovens e promovida por quem aufere lucros através disso, enquanto não privilegia atividades em que está em jogo o saber, sem nenhum preconceito de classe contra aquilo que definitivamente representa a emancipação das massas – a assimilação do conhecimento cultural elaborado historicamente no decorrer dos séculos. Alguém dirá que se trata de cultuar o saber das classes superiores em prejuízo das culturas e manifestações locais, exatamente aquelas que exercidas sem o mínimo de senso crítico faz se eternizar o status quo injusto.


Ian não é nosso primeiro aluno a construir uma bela história através de uma vida exemplar de estudos. Há alguns outros que poderiam ser mencionados e inclusive levados à escola para testemunhar isso. E assumir o que proponho acima pode ser uma estratégia de fazer multiplicar esse modelo de aluno que demonstra como é possível para estudantes de escolas públicas vislumbrarem um futuro melhor para si e para sua comunidade através da escola.