quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Por uma teoria do poder discente



Se o amor, para a música “Provas de amor”, dos Titãs, só existe nas provas que se faz dele, para Michel Foucault também “o poder não existe; existem, sim, práticas ou relações de poder.”[1] Na mais exata classificação que a gramática faz dos substantivos abstratos, as palavras amor e poder apenas nomeiam seres que não têm existência própria, mas derivam o seu ser de outros seres já existentes.[2]

Considerando, pois, o poder enquanto algo que é exercido pelos indivíduos em suas relações de forças cotidianas pretendo novamente abordar aqui o poder discente como algo visivelmente notável no espaço escolar, cujos resultados também são expressamente percebidos por qualquer observador atento que reflita sobre a problemática escolar atual.[3]

Se o exercício do poder pelos governados resultou progressivamente na diminuição do poder central do governante o mesmo se pode dizer do exercício do poder discente, e não o falo motivado por qualquer saudosismo docente. Não se trata de afirmar o poder discente, conforme podemos observar no seu desenvolvimento histórico, como algo resultante apenas da relação de forças entre professor/diretor/escola X aluno, mas de, através de uma investigação atual e localizada, afirmar que essa relação de forças é determinante no modo como as escolas funcionam hoje e diz muito sobre a forma como a aversão ao saber se instala cada vez mais forte numa época que se pode denominar de sociedade da informação e do conhecimento.

Neste sentido, se é possível afirmar que à diminuição do poder central dos governantes não corresponderam formas qualitativamente superiores de participação política por parte dos cidadãos, o mesmo se pode concluir do que resulta da diminuição do poder docente, isto é, não assistimos hoje a uma maior participação do aluno no sentido de lutar por processos educativos que contribuam para uma formação de qualidade, seja nos aspectos da formação para o trabalho, do desenvolvimento pleno do aluno ou da formação para a cidadania, mas sim de minar o poder de formação dos educadores, sobretudo daqueles embebidos de um encantamento que os mobiliza à promoção de uma educação emancipadora. E muitos dos exemplos de conflito entre professor e aluno já listados neste blog evidenciam este fato.

Na condição de professor lamento que o exercício de poder discente se dê, por exemplo, em favor do que tenho denominado de saber fast food. Trata-se daquele saber de caráter sucinto, subtraído de toda e qualquer relação que esse saber mantenha, em suas múltiplas relações de constituição, com o mundo real. É como ignorar, por exemplo, que a passagem do mito ao logos não tenha nenhuma relação com o surgimento da pólis grega e o exercício da palavra que convence pelo cidadão, conforme sugere Jean-Pierre Vernant,[4] ou que o advento do Romantismo enquanto momento cultural do Ocidente nada tenha a ver com a ascensão da burguesia europeia e de todos os modos de viver e ver o mundo próprios dessa classe vivenciados a partir do século XVIII.[5] Obviamente que os conceitos de mito, filosofia e Romantismo podem ser abordados isoladamente, recortados do seu contexto de formação, para se ganhar tempo e não forçar o pensamento, mas é questionável até que ponto um ensino que trate o saber desse ponto de vista contribui para fazer o aluno compreender que o conhecimento se constitui a partir de múltiplas relações com o mundo real, o que o ajudará também a refletir sobre noções como pobreza, desigualdade, classes sociais e corrupção política como categorias que tentam apresentar a realidade não como fenômenos naturalizados, dados previamente, mas como construtos sociais seja em relação ao que a noção designa, seja em relação à própria designação como um construto social, uma resposta a uma determinada problemática do mundo humano.

Se essas são, portanto, as reinvindicações dos discentes, atualmente, o que esperar desse exercício de poder discente a partir de então? Obviamente que há muito em jogo nessa problemática, como o generalizado processo mesmo de valorização apenas dos saberes necessários ao trabalho, ao exame escolar oficial ou o mínimo exigido para a obtenção de um diploma. A crescente mercadologização do ensino,[6] que privilegia o acesso ao diploma em prejuízo do saber, é outro fator que muito contribui para essa problemática, somada à satisfação generalizada que o acesso ao trabalho para manter um nível cada vez mais crescente de consumo parece proporcionar aos indivíduos em geral, que não se veem motivados a uma busca do saber como algo inerente ao próprio processo de desumanização das pessoas.

O que fazer, então? Fazer retroceder a balança do poder em benefício do professor e da escola com o fim de forçar os alunos a processos de aprendizagem mais comprometidos com a emancipação humana parece inviável, seja pelo caráter impositivo que o processo de ensino adquire, seja pelo fato de os próprios professores, as escolas e os sistemas de ensino, em sua maioria quase absoluta, não serem capazes de perceber a gravidade da problemática e de estarem, inclusive, dispostos a perpetuar o ensino fast food. A questão é que se hoje os alunos exigem o saber fast food, amanhã exigirão apenas o boletim escolar com a designação “APROVADO”, servindo as salas de aulas, como muitos já a tornam, como apenas espaço de lazer, conversação informal, espaço por excelência de compensação dos momentos de interação virtual.

(In)felizmente quando esse momento chegar, e não está tão distante, acho que não estarei mais numa escola.

[1] MACHADO, Roberto. Introdução. In: FOUCAULT. Michel. Microfísica do poder. 22 ed. Rio de Janeiro: Graal, p. XIV.
[2] Cf. AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da Língua Portuguesa. 3 ed. São Paulo: Publifolha, 2010, p. 155.
[3] Abordei a temática do poder discente também aqui: http://professorsulo.blogspot.com.br/2012/11/de-sua-aula-moco.html
[4] Cf. COTRIM, Gilberto; FERNANDES; Mirna. Fundamentos de Filosofia.
[5] Cf. HAUSER, Arnold. Rococó, Classicismo, Romantismo. In: ________.História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

O professor, o retorno



Web

Há mais ou menos dois meses não publicava aqui no diário. Compreensível, considerando que estávamos em férias em boa parte desse período e não pude me confrontar com os incidentes próprios de sala de aula que me motivam a escrever pra esta página.

Mas eis as aulas em curso e minha pena novamente em ação. Pra começar em clima de mais um conflito, pois, diferentemente do poeta não pude me conter “em face do maior encanto” – a possibilidade já quase realizada de um novo emprego e toda a insipidez própria da realização de atividades que já se cogita abandonar.

Mas vamos às salas de aula. Novidades? Sim! Ou pelo menos avanços, melhorias pontuais, relativas. É evidente a ampliação, ainda que mínima, do círculo de leitores, principalmente aqueles ávidos pelas sequências ficcionais de Rick Riordan. Da minha parte continuo enfatizando (o que já parece até chato pra muitos) a necessidade da leitura constante e diversificada como condição para o sucesso escolar, profissional e a compreensão e transformação do mundo. E é exatamente a ausência da leitura que dificulta a compreensão das noções simples de filosofia ou sociologia ou o contato com a produção literária em geral. Numa aula sobre o conto não é estranho ouvir de alunos a quem pedi que lessem um exemplar machadiano – “Que invenção, essa sua, professor!” ou reclamações sobre o número de páginas do texto, que eram três. Relacione a isso o padrão do material didático ao impor conceitos, noções, níveis de leitura e discussão que parecem enquadrar um perfil típico de aluno – o leitor, o curioso, o estudante.

Uma dificuldade sempre latente na sala de aula é a aquela, enorme, que têm os alunos de lidar com o princípio voltairiano do respeito à liberdade de expressão. Aliás, foi um dos poucos elementos contratuais que discuti em sala de aula – o respeito à fala do outro, ainda que ingênua. Em oposição à luta “até o fim” pela direito à fala do outro pereniza-se a zombaria, muitas vezes, a indiferença, a hostilidade própria aos que não sabem o que é estudar porque nunca viram um exemplo real disto conforme o fazem as classes ou grupos que depositam na aprendizagem do saber convencional a permanência secular que esses estratos usufruem na hierarquia social.

Obviamente que esse retrato não é totalmente  homogêneo. Há alunos que fazem valer a pena qualquer sacrifício docente, que fazem ressurgir o ânimo dos que acreditam ser a escolarização do oprimido um ato de rebeldia contra o status quo. Mas esse número é dos que se obscurecem em face da turba misosófica.

Enfim, vamos ver como as coisas se processarão nestes dias de dilemas e conflitos entre as novas oportunidades de trabalho e a missão de educar os não esclarecidos. Uma coisa é certa: que as massas nasceram para as cavernas da ignorância e que estão dispostas a hostilizar, quase sempre, qualquer um que se arrogue a posição de esclarecedor, de parteiro de ideias, e o exemplo de Sócrates é sempre eloquente pra corroborar isso.