domingo, 15 de setembro de 2013

A propósito do “tirador de açaí”: mito, religião e política na sala de aula



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A proposta curricular de Sociologia inclui o tema Formação cultural e identidade do tocantinense entre os temas a serem trabalhados na 3ª série do ensino médio, na disciplina de sociologia para o terceiro bimestre. Em razão da recente emancipação do estado do Tocantins muitas vezes sentimos a ausência de elementos identitários que saltem à vista a exemplo do que ocorre com outras unidades da federação. Apesar disso muitos alunos fazem referência ao girassol, à arte realizada com o capim dourado e, por conta da presença da história regional no currículo escolar, poderiam até citar nossos “heróis”, dentre os mais ilustres Joaquim Teothônio Segurado e Siqueira Campos. Resolvi, entretanto, fugir de um planejamento que simplesmente arrolasse elementos culturais ou personagens que emergem da tentativa de se abordar o tema da identidade do tocantinense em sala de aula – fui direto ao ponto, qual seja, fazer compreender mesmo, em sala de aula, como se formam esses processos identitários e visando a que fins.


O material para tanto foi utilizado a partir do que há produzido nos últimos anos por professores da UFT/Araguaína. Dois textos aos quais tive acesso subsidiaram meu planejamento, embora haja usado em sala de aula os textos de apenas um deles.[1]


Na verdade, os alunos é que fizeram a apresentação dos textos, cabendo a mim apenas o papel de orientador e fomentador de alguns questionamentos. Foi incrível o modo como a maioria dos grupos envolvidos expôs claramente os textos fazendo as relações com o modo como inclusive políticos locais articulam elementos mítico-religiosos para a construção de perfis políticos com sucesso eleitoral. Para tanto, evitei confrontá-los com os elementos mais puramente teóricos da tese do professor Jean Carlos Rodrigues, apresentando-lhes os elementos centrais do texto apesar do cuidado de não abdicar de todo  dos elementos teóricos que fundamentam e norteiam o desenvolvimento da tese.


No decorrer das apresentações os alunos compreenderam e expuseram o caráter explicativo do mito, de atribuição de sentidos e sua utilização intensiva na política, inclusive na contemporaneidade, associado a elementos religiosos. Compreenderam que os principais fatos da história do Tocantins foram selecionados a partir de uma ordem de importância política, associados à necessidade de se referir a supostos heróis a quem se pudesse associar novos heróis do presente; que as datas oficializadas no estado também estão sujeitas a essa importância política, valendo mais pelo seu encaixe numa estrutura mítico-política do que pelo fato em si relacionado à data; que a presença do elemento religioso no discurso político não passa de mais um ingrediente dessa articulação, além da referência ao nortista como um povo sofrido, que precisa ser libertado do centro-sul goiano, este geralmente apontado como colonizado, maligno, explorador, em contraste com o caráter de defesa dos oprimidos, atribuídos aos que lutaram pela emancipação do norte do antigo Goiás.


Que fique claro que a intenção não foi querer que os alunos negassem os fatos históricos associados a uma produção historiográfica sobre o Tocantins. Não se trata, pois, de negar a cisão dos garimpeiros do norte no século XVIII em relação ao centro-sul ou obscurecer a presença de Teothônio Segurado nos eventos relacionados à Comarca do Norte. Trata-se, por outro lado, de fazê-los compreender que ao se mencionar, por exemplo, as diferenças étnico-culturais entre os que povoaram o sul e o norte de Goiás como justificativa para a emancipação do Tocantins, enfatizar que tal justificativa exerceu apenas a função de corroborar um discurso emancipatório que parecesse apetecível às massas, e que de modo algum os pronunciadores desse discurso estavam preocupados com as diferenças socioeconômicas entre o norte e sul, mas apenas com os interesses de uma elite agrária ávida por um espaço só seu, onde pudesse livremente fazer seus mandos e desmandos, como, aliás, ocorreu de fato desde a emancipação: grandes porções de terra divididas entre membros dessa elite, assim como a divisão dos cargos criados com a criação do estado e todos os demais benefícios que poderiam advir da emancipação.


Enfim, a discussão, que envolveu todo um bimestre, analisou ainda outros aspectos dessa articulação mítico-religiosa envolvida num processo de constituição de identidade do Tocantins, refletindo nos processos também utilizados nas campanhas municipais. Todo mundo relembrou chavões como “o tirador de açaí”, associado a um candidato local, para construir em torno dele a ideia de alguém realmente identificado com a luta do trabalhador manual, que retira o sustento da natureza pra sobreviver enquanto é explorado pelos políticos que não passam pela mesma situação.


Enfim, achei que essa discussão em sala de aula seria muito bem mais produtiva do que simplesmente arrolar elementos integrantes de nossa identidade como o girassol, por exemplo, sem uma reflexão sobre os processos e contextos de produção e integração desses elementos para fins políticos.






[1] O primeiro texto é a tese de doutorado do professor Jean Carlos Rodrigues (Estado do Tocantins: política e religião na construção do espaço de representação tocantinense), do colegiado de Geografia. Disponível em: <http://www4.fct.unesp.br/pos/geo/dis_teses/08/jeancarlosrodrigues.pdf>.  O segundo, a dissertação de mestrado do professor Eugêncio Pacceli, do colegiado de História (Ensino de História, identidade e ideologia: a experiência do Tocantins). Disponível em: <http://ppge.fe.ufg.br/uploads/6/original_Dissert_Eug%C3%AAnio_Pacelli_de_Morais_Firmino.pdf>.

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